Publicado originalmente na maravilhosa Revista Vertigem, em 16/01/2017.
É com muito prazer que escrevo pela primeira vez neste espaço que tanto admiro, a revista
Vertigem, uma revista feminina em todos os sentidos, feita por e para mulheres. Sinto-me grata por trazer minha voz e meu corpo negro para este espaço, não por crer que posso representar a totalidade de pessoas negras ou das mulheres negras, realmente não creio que isso seja possível, mas por acreditar que meu corpo e minhas palavras carregam muito mais do que meu ego limitado, e, sendo assim, meu corpo negro abre espaço para que muitas outras mulheres negras possam se identificar ou não, possam querer falar em consequência disso e abrir um espaço de compartilhamento de saberes muito importante para toda e qualquer reflexão e para nosso crescimento individual e coletivo. E é com esse sentimento que trago uma reflexão que tem dormido e acordado comigo nos últimos tempos. Diante de chacinas em presídios, chacina de famílias motivadas pela misoginia, de mães que perdem o direito de chorar pelo filho morto e de mulheres que são enganadas e mortas sonhando em dar um enxoval a seu filho, quais são os corpos que importam em nossa sociedade? Nos Estados Unidos há um grande movimento gritando
“Black lives matter”, isto é, “vidas negras importam”. Eu segui uma trilha para refletir daqui do meu cantinho a respeito dessa afirmação e espero que minha trilha também estimule a reflexão de vocês.
Tudo começa e termina no corpo, é ele a nossa primeira morada, antes mesmo da casa e do mundo, é dele que a gente não pode se desvencilhar, é nele que contamos uma história de muitas vidas, através de nossas características como cor, cabelos, estatura, peso. Dele e também dos nossos genes que carregam a herança de toda nossa linhagem familiar.
Pedagoga, psicóloga e uma das minhas musas inspiradoras, Azoilda Loretto da Trindade, conceituando alguns valores civilizatórios afro-brasileiros, falou sobre a importância da corporeidade para os povos africanos e também para nós. Ela destacava que esses povos trouxeram suas riquezas no corpo, porque este havia sido o único bem que lhes foi permitido trazer. Os europeus que os trouxeram de lá vislumbraram apenas sua força de trabalho e, assim, os trataram como máquinas, como coisas, mas havia muito mais naqueles corpos, havia história, memórias, ancestralidade, formas, cores, línguas, havia a sacralidade daqueles corpos, e, por isso, segundo Azoilda, a corporeidade é um valor civilizatório importante.
Antes de conhecer outra pessoa, eu vejo o seu corpo, suas marcas, sua história contada através do cansaço de um ombro caído, vejo a alegria num semblante luminoso ou mesmo a tensão de uma testa franzida. O corpo também conta outras histórias, ele revela padrões impostos e, por meio dele, podemos também perceber que padrões são valorizados e quais têm sido marginalizados nessa sociedade.
E o que a nossa experiência em sociedade nos diz sobre nossos corpos? O corpo das mulheres vem sendo escrutinado, legislado, engessado desde sempre, não é à toa que, de forma geral, nem culturalmente nem legalmente temos direito a decidir o que fazer com nossos corpos, vide a lei que criminaliza o aborto ou os padrões estéticos impostos às mulheres que não observam a realidade brasileira e imprimem um modelo de mulher magra, branca, de cabelos longos e lisos, ou seja, tudo nos aponta para um modelo que exclui a maioria de nós, inclusive a dificuldade em achar diversidade de roupas interessantes acima do manequim 38. Ainda assim, estamos por aí, submetendo-nos a dietas malucas, expondo-nos a químicas agressivas para domar os cabelos, para moldar o corpo com cirurgias ou métodos invasivos e, dessa forma, tentarmos alguma aceitação externa.
O preço disso é uma desconexão total de nós mesmas, de nossas histórias, das formas corporais que contam as histórias de nossa ancestralidade, das marcas que nos fazem pertencer às nossas famílias, que nos lembram de respeitar as nossas origens. Clarissa Pinkola, em seu lindo livro
‘Mulheres que correm com os lobos’, dedica um capítulo ao “corpo jubiloso” e lembra que ele, o corpo, é um catalisador de todas as nossas experiências e nos informa
sobre cada uma delas.
Para a psicanálise, é a partir da imagem do corpo que constituímos o nosso “eu”, essa imagem seria introjetada desde fora, identificada internamente e depois, projetada pelo sujeito. Com a distinção que nossa sociedade faz a respeito dos corpos, percebemos o quanto isso pode afetar a construção de nossas subjetividades. Para os corpos perfeitos, tudo, para os outros corpos, a lei, o julgamento, os olhares, a reprovação, a marginalidade.
A psicanalista Neusa Santos Sousa, no livro
‘Tornar-se negro‘, trata dos obstáculos na vida das negras e negros em sua trajetória de subjetivação. Ela afirma que, nesta sociedade, no caminho da ascensão social, as pessoas negras precisam negar seu passado e seu presente: o passado no que diz respeito a suas tradições e histórias, e o presente referindo-se à negação da discriminação.
Ora, negar o passado seria distanciarmo-nos de tudo aquilo que nos constitui, as bases culturais e filosóficas de vários povos que, querendo ou não, estão presentes em nossos genes e em nossa memória ancestral. Significa esquecer, por exemplo, da cultura e filosofia iorubá, que, entre outras, chegou até aqui através dos corpos africanos e nos ensina que tudo no universo é divino e tem personalidade. Esquecer de
Esù Bara (lê-se Exu Bara), uma divindade demonizada pelo olhar eurocêntrico e cristão, que seria o princípio dinamizador e também nosso Mensageiro. E sabe onde seria a morada desta divindade? O corpo! Esù Bara é o mensageiro divino que mora em nossos corpos e nos informa sobre nossa necessidade de movimento, descanso, informa sobre nossa totalidade e nos põe a caminhar. Eu ficaria linhas e linhas escrevendo sobre a importância de nos apropriarmos de nossos corpos, sobre nos integrarmos com nossa verdade interior, sobre olhar, aceitar e assumir o corpo que temos, mas, por hoje, vou escolher problematizar uma questão: se o corpo carrega algo tão importante como as memórias, não apenas de nós mesmas, mas de nossa ascendência (ancestralidade), o que acontece quando hierarquizamos os corpos que importam? Como essas regras se impõem a nós e quais as consequências para os corpos marginalizados?
Basta deslocarmos o olhar para fora e vemos corpos negros nas favelas sendo mortos pelo Estado, pela violência, pela fome, pela falta de perspectivas e qualidade de vida. Corpos negros nos presídios, em consequência da morte simbólica e/ou real nas favelas, corpos negros nas instituições psiquiátricas, adoecidos em sua saúde mental por não “se enquadrarem” na lógica do nosso mundo ou porque o mundo não tem lugar para eles, corpos negros sem educação formal e destinados, em sua maioria, a trabalhos braçais, corpos de mulheres negras grávidas violados para o uso e abuso de outrem, corpos negros hiperssexualizados sendo expostos em vinhetas carnavalescas, nos estereótipos objetificados criados pela mídia televisiva ou vendidos como “prato principal” do turismo sexual. Corpos negros nos lugares que não queremos ver, experimentar, pensar, no lugar daquele outro distante, no lugar daquele que não sou eu, do asco, do não humano.
E assim se constitui uma ideia sobre a população negra no Brasil. Nossa sociedade não está habituada a ver nem aceitar pessoas negras em lugares diferentes desses que mencionei, vejamos as dificuldades em aceitar pessoas negras nas universidades ou a entrada e atuação dos médicos e médicas negras estrangeiros. A ideia acerca da população negra num lugar de subalternidade é o que está cristalizado em nossa base cognitiva, ou seja, a maneira como adquirimos o conhecimento a respeito da população negra está marcada pela percepção que temos do mundo, por nossa memória e nossas referências socioculturais. No Brasil, isso tem a ver com aprender desde a escola que pessoas negras foram escravizadas, que não resistiram a isso, que essa escravidão foi abolida por uma princesa e, desde então, a população negra não fez nada a não ser “se vitimizar” como desculpa para não progredir.
Precisamos conhecer a história por inteiro, saber sobre as civilizações africanas que existiam desde antes da invasão europeia, a tecnologia que foi importada através do conhecimento desses corpos que foram escravizados, no âmbito da metalurgia, da agricultura, da medicina, conhecer as lutas do povo negro, a resistência dos quilombos, os movimentos negros atuantes e que influenciaram e influenciam nas lutas pelos direitos civis, direitos humanos e direitos das mulheres, conhecer nossos heróis e heroínas, nossos(as) cientistas, mártires, conhecer uma história que nos foi negada pelo racismo e que discriminou nossos corpos entre bons e maus, brancos e negros, visíveis e invisíveis. E, assim como fizeram com nossos corpos, também o fazem com nossas dores, com nossas conquistas.
Em setembro de 2016, eu tive a felicidade de ser convidada para falar no seminário
‘Ventres livres? Mulheres negras e maternidades’, realizado pelo grupo Intelectuais Negras, participei da roda de conversa “Territórios dos ventres livres e sexualidades”. Naquela ocasião eu pude falar sobre saúde, sexualidades e maternidades, assim mesmo, com “s” no final, pois acredito na diversidade, logo não haverá uma forma, nem um número limitado de formas de viver a sexualidade, a maternidade, a paternidade; não há limites para formas de viver, e toda forma de vida deve ser respeitada. Falei também sobre a importância de resgatarmos a sacralidade dos nossos corpos, não numa perspectiva engessada e judaico-cristã, mas de maneira a entender o corpo como nosso principal vaso alquímico. É a partir dele que experimentamos o mundo, que nos encontramos com os outros, que nos percebemos, que transmutamos todas as nossas vivências.
O corpo é sagrado e precisa urgentemente ser respeitado, não este ou aquele corpo, mas todos os corpos. Precisamos compreender todos esses processos que hierarquizam e escravizam nossos corpos e combater essa dicotomia que nos aprisiona, que nos divide e que segrega alguns grupos mais do que outros. O saber sobre nossos corpos, entrelaçados com nossas histórias e tudo o que nos constitui, abre a janela para um sem-número de possibilidades de ser, para nos enxergar como somos: únicos e ao mesmo tempo diversos.
Diante da questão sobre quais são os corpos que importam, me vejo em frente a tantas imagens de opressão, tantos preconceitos que apoiam um imaginário social e causam sofrimento a todas as pessoas consideradas fora do padrão. Nesse sentido, destaco a população LGBTTI, a população negra, as mulheres e, especialmente, as mulheres negras, grupo no qual eu me enquadro. Vejo que é urgente a necessidade de questionar e desnaturalizar os padrões que engessam nossos corpos. Nós precisamos criar um ambiente em que as várias maneiras de existir sejam respeitadas e apoiadas na multiplicidade e diversidade, talvez seja essa a quebra de paradigma que precisamos para termos uma experiência de viver em equidade, a experiência de respeito a todos os corpos e a todas as histórias contidas em cada um deles.
Curiosamente, ao buscar uma imagem para associar a este texto, encontrei esta foto da dupla de cantoras gêmeas
Lisa-Kaindé e Naomi Díaz, que formam o Ibeyi, dupla musical de que gosto bastante e que recomendo ouvir. Elas trazem em suas letras e canções a ancestralidade afro-cubana, falando de suas divindades através da
tradição lukumi, que seria a maneira cubana de cultuar as divindades africanas. O nome da dupla faz alusão à divindade que conhecemos, no Brasil, como
Ibeji, os gêmeos divinos. A palavra significa, literalmente, “nasceram dois”. Como gêmeas, para sua tradição, elas também são a divindade na Terra. Nada é por acaso, pois é desse lugar de respeito à historicidade dos corpos que precisamos olhar para cada pessoa, devemos olhar o universo encerrado em cada sujeito e que se comunica conosco por meio de seus corpos onde estão tatuadas as suas memórias.
Nany Kipenzi Vieira é psicóloga, iniciada para Yewa, especialista em Clínica Psicanalítica, pesquisadora das relações raciais, de gênero, laicidade e liberdade religiosa.
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